Sunday, April 13, 2008

Reportagem in O Jogo de 2008-04-13




29 de Fevereiro 2008 – para trás ficavam todos os preparativos que tinham consumido os últimos dias antes da partida para Luanda. As motas já tinham sido expedidas quase duas semanas antes para cumprirem os infindáveis trilhos da burocracia alfandegária. Um circuito kafkiano que, de dia para dia, fazia aumentar a nossa angústia de Sagitários separados das suas metades : “Novidades das motas?!...” era o teor das mensagens com que incansavelmente bombardeávamos os nossos interlocutores em terras de Luanda. O silêncio algo comprometido do outro lado fazia recear o pior.

Ao embarcar no aeroporto Francisco Sá Carneiro tivemos alguns familiares e amigos que se quiseram associar à partida dos Dragões para África. Entre nós trocávamos humoradamente o comentário que se iria tornar um leit motiv da vontade da Expedição : “Agora é que é irreversível!...”. Como quem esconjura os azares da fortuna que podiam ainda tolher o nosso sonho.

Depois, aterrar em Luanda. O bafo quente recebeu-nos no aeroporto. Húmido e quente. Com ele alguns amigos da Casa FCP em Luanda que iniciavam dessa forma o que seria um acompanhamento constante e atento da nossa presença. Um enxame de prestimosos carregadores e crianças atordoou-nos em ruído . Fomos levados para um jipe que nos esperava e subtraídos àquela recepção de calor duvidoso.

As primeiras imagens de Luanda desenrolavam-se ante os nossos olhos como a troca das primeiras impressões dentro do jipe. Já nos esperavam na LAC (Luanda Antena Comercial) para nos juntarmos a um debate em directo que ia para o ar todos os sábados. O programa em questão , “Bom Dia, Bom Dia”, já tivera a nossa participação telefónica duas semanas antes. Mas nada fazia prever o que fomos encontrar. Debaixo de uma árvore frondosa, em redor de uma mesa,sentava-se um grupo de pessoas que animada mas serenamente discutiam de tudo: Luanda, o trânsito, o desporto juvenil, a cultura, a vida enfim. Ali mesmo, com os ruídos e os cheiros fortes da manhã de Luanda, sem cerimónia alguma além da festa de estarem reunidos. Entrámos na conversa com naturalidade, outro bafo quente nos recebeu, o de amigos que bem recebem.

Só após essa recepção ( que deu o toque para toda a estadia em Angola) é que pudemos ir ao Hotel Trópico tomar um banho, arrumar as bagagens , prepararmo-nos para a Cidade. A partir daí é quase um caleidoscópio de imagens e sons . A recepção na Casa do FCPorto em Luanda é calorosa e desde a nossa chegada até abalarmos para a Expedição sucedem-se as recepções e audiências por parte de personalidades angolanas : o Ministro da Juventude e Desportos, o Chefe Estado Maior General das Forças Armadas, o Ministro da Defesa, o Provedor de Justiça – todos reiteram o interesse da nossa iniciativa e o carácter simbólico da mesma , o facto de serem dois portugueses a empreender esta rota de união Luanda –Pretória-Maputo num tempo pós-guerra.

Finalmente, conseguimos aceder às motas que estavam guardadas num armazém nos subúrbios de Luanda . Fim de tarde , céu escuro prestes a desabar em forte chuva tropical, as motas atravessando os musseques que estrangulam o centro de Luanda num ambiente que nos pareceu demasiado explosivo. O pior que podia suceder seria ficar sem gasolina naquele emaranhado de ruas por onde circulavam caóticos os candongueiros, os peões, carros de todas as direcções.

A sorte protege os audazes! Chegámos a bom porto : o Clube Miami onde as motas ficariam expostas praticamente até ao arranque da Expedição. Entrevistas para rádios e televisões locais , troca de impressões com tantos outros aventureiros que por ali passavam, conselhos sobre os trajectos , ainda a visita à ilha do Mussulo e à bela Roça das Mangueiras,...

É este também o desconcerto desta cidade : da selva urbana caótica e agressiva ao linguajar calmo , obediente ao ritmo africano que tanta tranquilidade transmite. A beleza dos locais, as vistas fabulosas sobre a baía, os carros parados em engarrafamentos monstruosos parcem admirados por serem tantos para tão poucas ruas, as mulheres belas e altivas como gazelas, o vigor todo posto num só dia.

Era o regresso ao Trópico que nos permitia assentar ideias . Conhecíamos uma fadiga que não tínhamos previsto : a das incumbências sociais e da vida cosmopolita que em tudo diferia daqueloutra para que nos tínhamos preparado, a da Expedição. Até o Hotel fervilhava de negócios, contactos , encontros, à imagem de uma Casablanca nos anos 40. Podia o corpo repousar, que o espírito sempre se mantinha inquieto.

05 de Março . Noite com jantar na Casa do FCP em Luanda. Ambiente febril, não fosse estar em causa a qualificação dos Dragões para a Liga dos Campeões. Sala cheia, tripas à moda do Porto e uma atenção à televisão que não deixava passar lance sem comentários. Não há melhor forma de nos sentirmos em casa! Todavia, a eliminação do Clube deixa um amargo de boca que apenas encontra ânimo na Expedição que começará na madrugada do dia seguinte.

Os dados estão lançados! Os Dragões vão mesmo estar em África . Poderão finalmente confirmar que “após sairem de Luanda vão começar a ver chão, chão , chão....”.

A partida no Largo da LAC (Luanda Antena Comercial) tinha que ser bem cedo na manhã seguinte. O trânsito infernal de Luanda podia engolir-nos se fôssemos mais tarde. Assim foi. Quase engolidos, descolámos da cidade durante 30 km , acompanhados por um jipe e uma pick-up. Connosco alguns membros da Direcção da Casa FCP em Luanda , um jornalista da LAC, um operador de imagem que tentaria captar algo da expedição que a fizesse falar.

E foi o chão que começou a tomar conta das motas. O mar começa a aparecer mais azul que nunca, braços de rios na sua direcção, vem aí Porto Amboim parado no tempo das pescas artesanais, já lá vai a Barra do Cuanza, vamos às Cachoeiras a caminho da Gabela e pasmamos perante a luxúria da paisagem.

Lobito saúda-nos da forma mais surpreendente. Escolta policial a abrir caminho pelas ruas da cidade, percorre-se a Restinga e aponta-se a Benguela para recepção pelo Governador.

Somos já da cor do chão, terra e pó e alguma lama.

Angola vai sendo percorrida num assombro crescente ante o ar primitivo das cubatas e dos que nos olham na margem das estradas, ou a tomar banho nas lagoas formadas pelas chuvas. Porque estas passam a ser companhia frequente. Mais do que tropicais, torrenciais. Já após o Lubango vamos ver o Cunene a galgar as margens e cobrir savana e estradas num só manto uniforme , semi-pantanoso.

Natureza telúrica, esta que sobre nós se abate . Ou no olhar da Fenda da Tundavala, rasgo audacioso de pedra imponente. No desfazer das curvas sinuosas da Serra da Leba. O frio marca presença , homens e mulheres na margem das estradas alagadas , com mantos coloridos a renegar o frio neste Verão estranho.

Trajectos mais difíceis, a exigir mais dos pilotos –que as motas são muito o que delas fizermos... Desconcentração pode ser fatal, as armadilhas são muitas . Sucedem-se buracos, valas cheias de água, pântanos de lama, pedras encobertas. As margens da estrada são fabulosamente serenas , no ar plácido de planície alagada. A estrada contrasta num infernal desalinho de piso e acidentes de relevo que degeneram em algumas quedas ou desafios mais difíceis.

Não admira que uma das motas sofra uma avaria, precisamente onde mais era massacrada. Apoio de suspensão traseira partido, restava içá-la para a pick-up e demandar a Namíbia para procurar a peça necessária. Nunca o nome “escora” pareceu tão apropriado, escorados que estávamos na reparação da mota. Uma mota continuava, a outra parecia olhá-la de cima da carrinha, acanhada na fraqueza de ter interrompido a viagem.

Alternávamos agora pensões manhosas com os bons hotéis que nos tinham recebido para trás. Em Kahama contámos as baratas, com o mesmo entusiasmo porém com que comêramos as mangas em Chongorói. Quando enfim se chega a Ondjiva,deixava-se para trás um esforço sobrehumano para transpor as estradas alagadas do Sul de Angola. O estado de calamidade, decretado nessas zonas, era o estado natural da nossa Expedição. O antídoto: força anímica, bom convívio, muita vontade de triunfar. E a necessidade de cumprir calendário : tínhamos de estar em Pretória no dia 18, chovesse o que chovesse. Na fronteira deixámos os nossos companheiros e prosseguimos sozinhos.

Por força da avaria, vêmo-nos obrigados a alterar a rota que tínhamos planeado : não seria possível o desvio na África do Sul para chegar à desejada Cidade do Cabo? Paciência! Iríamos conhecer melhor a Namíbia... E em boa hora isso aconteceu. O país surpreende pelos contrastes. Entre o mar que acaricia as pequenas cidades costeiras que brincam em nomes de Swakopmund ou WolvisBay e o deserto selvagem e agreste que nos fita do alto de enormes dunas penteadas pelo vento.

Windhoek não nos encantou, antes nos exasperou pela sua pachorrenta insipidez. Brilhou porém no magnífico acolhimento que nos dispensou o nosso anfitrião, Dio Manso, nome bem escanhoado para aquele rosto. Por ele conhecemos o lado cosmopolita da capital namibiana, aquilo que a faz correr mais, a mescla das culturas afrikanner e dos negros ovambos, a separação pacífica entre grupos culturais. A Suíça da África austral ,como também lhe chamavam, tinha alma apesar de tudo....

Reparada a mota, seguimos em direcção à fronteira de Upington. Pernoitar em Solitaire, nas franjas do deserto da Namíbia, foi tomar o sabor do nome mesmo. A temperatura começava a baixar à medida que nos aproximávamos da África do Sul. Alguns 100 kms após a fronteira, de novo a chuva. Fininha desta feita. A fazer-nos parar em terras de nomes encantatórios : Keetmanshoop ou Kuruman, algo entre Robinson Crusoe e o Senhor dos Anéis....

A chegada a Pretória cumpre a agenda. Dia 18 , mais tarde um pouco doque a hora de almoço que se previra. Mas éramos esperados e da forma mais cenográfica que se pode imaginar . Na imponente Casa do FCP fizeramnos galgar a escadaria e entrar com as motas pelo salão nobre adentro onde um grupo numeroso nos saudou com uma ovação. Boa gente, muito carinho no acolhimento. Alguma pena por lá estarmos somente uma noite ... O jantar oferecido no Casino Morula homenageia os Aventureiros e aí se faz ouvir a vontade de receber o Presidente do FCP na sede já com dezenas de anos .

O dia 19 amanhece vendo-nos partir para Maputo. Quando o fim está próximo queremos retardar e acelerar ao mesmo tempo. Pressa de não chegar, contradição tensa de uma viagem! Subimos para Moçambique , sobe a temperatura. Abandona-se a paisagem mais verdejante, a aridez ganha algum campo, o calor aperta. Abençoada recepção na fronteira que nos furta aos trâmites alfandegários , graças aos amigos da Casa FCP de Maputo !

Maputo e Luanda. Comparação inevitável. Maputo respira calma onde Luanda é frenesi constante. Menos riqueza não gera tanta avidez e e sente-se que o tempo escorre mais devagar. Até a recepção pelo Ministro da Juventude e Desportos é mais distendida, diríamos que mais africana. O jantar num restaurante da marginal da Baía também ele escorre devagar como a brisa quente debaixo das palmeiras onde nos sentamos, junto às motas expostas à curiosidade dos restantes comensais.

Hotel Polana no fim da Expedição. O requinte final para os reis da lama, não deixa de ser irónico. Mas também merecido. As últimas notas são tomadas na varanda do hotel , o mar a brilhar mesmo ali em frente, vozes em conversas quentes e abafadas. É mais difícil recolher ao quarto para dormir, há vozes que se levantam dentro de nós. Chegámos ao fim, a missão foi cumprida . Agora é começar de novo. Para trás ficam a lama , a noite, a sujidade e a beleza, o suor empastado e o vigor, o cheiro a motas e o sabor a muito, a alma escancarada deste continente no nosso olhar aturdido.

Merecem isto, dizemos. Mas não sabemos para quem falamos. Apenas sabemos que fizemos algo maior do que nós.